Enredamento Curatorial
Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias.
De Outros Espaços, Michel Foucault, 1967
O pré é grave o pós é groove
Só a pontinha do iceberg – as questões existenciais, que perpassam toda uma vida, por mais subjetivas que sejam, sempre estão atravessadas em um conjunto de contextos que nem sempre são favoráveis e nem sempre são desfavoráveis. Viemos de processos históricos que, arriscaria dizer, são cíclicos, porque de vez em quando nos vemos de novo quase no mesmo lugar, e isso falando do pré, do que nos constrói e nos destrói em várias camadas, dia desses tava ouvindo um projeto chamado “outros fins que não a morte” e Linn da Quebrada falava !temos que sabotar a sabotagem! e os filmes dessa sessão emitem ondas sonoras visuais cerebrais de baixíssimo orçamento, altíssima potência criativa e política – resistência em tempos complexos. Essa ilha heterotópica traz a distopia enquanto atmosfera de possíveis futuros que, por mais absurdos que pareçam são completamente possíveis, como em DISNEYLOKA 2093 que, nas palavras do próprio filme, é um diário da terra arrasada, a ideia de um futuro madmax permeado de nostalgias audiovisuais, a lembrança de um lugar que talvez nem tenha existido e que se perde nos escombros da memória, juntamente com os escombros da humanidade. ABJETAS 288, a periferia e o centro, o capitalismo global, o percurso que persegue a ideia de uma redenção vendida que nunca chega e que nem se sabe se de fato existe, a ironia o riso o deboche e as performances, o fogo que queima em cima da água, fagulha-fogo de uma realidade não tão distante ou tão distinta. RELATOS TECNOPOBRES a invenção e o risco no cinema independente e na diegese de personagens que, no caos, sobrevivem, em contraposição à lógica de consumo e às ordens estabelecidas em favor de uma burguesia destrutiva, ordem-desordem, ficção científica e essa sensação de futuro-caos, porém, mesmo diante do achatamento de horizontes, o filme-relato reafirma o lugar de não-passividade (e levante) no fim do mundo. SIMULADOR DE REVOLUÇÕES corpos digitais que nos alcançam através do som de falas, corpos sem expressão gestual dispostos diante da sinestesia de linguagens, jogo, poesia, planificação de cenas, o esgarçamento da distância pandêmica, e a familiaridade com os constantes fins e recomeços, o filme se questiona e se responde: no fim a pergunta “tá tudo bem?” no meio a resposta “a gente só sonha que um dia vai dar certo”. KRISIS em sua cartela final dedica o filme a José Mojica Marins e reafirma que o cinema de horror resiste, o filme tateia sombra e luz, o experimento ensaístico e suas simbologias – o sacro a morte o fim p&b a putrefação a luz da lua, viver seria se deparar com constantes dicotomias em que dois e dois é igual cinco. AQUI JAZ O TEU ESQUEMA,
em ciclos,
o passado atravessa um futuro que improvisa.
existir é inverossímil.
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Dos corpos como rizomas do tempo
O corpo é produto de seus fantasmas. espaço interior e exterior ao mesmo tempo. Ponto zero do mundo, por onde o percebemos, vê-se parcialmente pelo espelho, desfaz-se na derradeira despedida e se presentifica no amor. Indócil aos contra-afetos de uma sociedade que se impõe de maneira invasiva e destrutiva. Dos corpos como rizomas do tempo traz obras e corpos que não se deixam apagar, afirmando em si o radical R-existir. O espiritual e o onírico se atravessam como chuva de estrelas nas obras de Tothi dos Santos. A coragem feminina, a natureza dos movimentos, sabedoria, sustento e criação são evocadas através das presenças de Oya e Nanã. Na espessura de suas narrativas afro-diaspóricas, em BÚFALA e DO PEITO AO PRUMO, Tothi apresenta diferentes temporalidades e experiências que conectam ancestralidade e cotidiano, corpo e natureza, mergulhando nossos sentidos nas raízes do belo. Em O VERBO SE FEZ CARNE, de Ziel Karapató, o título, nome outro de Cristo, ganha outras conotações quando o verbo é a arma bíblica das imposições e distanciamentos do divino. Numa potente performance, o círculo como terra demarcada, é território simbólico em que seu corpo, seus instrumentos e uma língua animal evocam a narrativa histórica de silenciamento e resistência. O close-up foi considerado uma ameaça à objetividade ontológica da imagem cinematográfica, afirmando sua potência na recusa a se entregar por completo às descrições, discursos e interpretações. Em IGNEA, ao convidar o corpo feminino para o close, Diego Lima aposta na sensorialidade como enigma da beleza, contrapondo a impetuosidade dos corpos, e a intimidade da textura da pele, aos sons indistintos do espaço público. VOCÊ JÁ TENTOU OLHAR NOS MEUS OLHOS?, dirigido por Thiago Felipe, evoca a sensação de um desejo contido na respiração entre dois corpos. A presença da imagem fotográfica articulando uma narrativa visual híbrida na qual, imagem, criador e criação são unidos pelo gesto de fotografar, estabelece um estado entre sentidos capaz de edificar um sensual lugar de encontro com a narrativa dos diferentes ritmos que o desejo pode adquirir nos corpos negros.
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Serão as dores substância da saudade?
Serão as dores substância da saudade, nesta ilha que se faz verbo? Ilhados no ambiente da casa, esses experimentos fílmicos nos contam atravessamentos de pandemias. Sonhos, delírios, dores, desejos, enlutamentos e saudades no imperativo da distância, são engendrados pela Covid-19, mas também pela pandemia da violência de gênero. Em ENSAIO, de Carol Sousa e Grenda Costa, a vontade da presença é calada por um contexto de ausência. A câmera dá a ver o vazio habitado por pessoas e situações de afeto, faladas/sonhadas/imaginadas. DOIS, Guilherme Jardim e Vinícius Fockiss, sozinhos em suas casas, põem-se lado a lado numa presença mediada pelas telas. Nesse diário íntimo no marco da pandemia por Covid-19, o momento atual é tingido pelo tédio, e o passado pré-pandêmico, revisitado com saudade. Com André Moura Lopes, O TEMPO DILATOU à espera do fim de duas pandemias que se encontram, a Covid-19 e o feminicídio. Sobreposto à saudades, o tempo passa mais lentamente. FAZEMOS DAS MEMÓRIAS NOSSAS ROUPAS, da Maria Bogado, vai do ambiente da casa, a uma ação performática, num contexto pré-Covid-19. É a violência de gênero que atravessa aqui, desde muito, pondo fogo/matando pessoas de gêneros, etnias e práticas subalternizadas. A PESTE, de Vanessa Dias, e ÉRAMOS EM BANDO, de Marcelo Castro, Pablo Lobato e Vinícius de Souza, põem em diálogo as artes cênicas com a arte cinematográfica. Num contexto pandêmico e em situação de quarentena, o delírio permeia a solidão em A PESTE. Este mesmíssimo cenário, no qual a presença figura online, perpassa o processo do grupo de teatro Galpão. E os encontros agora online, levam à confluência do ÉRAMOS EM BANDO.
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Sonar)))))))
sound navigation, sonar, instrumento de navegação utilizado para encontrar objetos ou corpos materiais a partir de ondas sonoras)))))) essa ilha é na verdade o espaço de água entre ilhas pois perpassa todas elas, e aqui, o som em primeiro plano close-up, que racha os vidros da janela com o agudo, abrindo-a para a audiovisão, como diria Michel Chion. INTERDITO evocação sem palavras, ondas sonoras transformadas em sinais elétricos a partir do toque do dedo do tato da eletricidade entre corpos, ausência de narrativa, presença de uma natureza vibratória que soa))) na concretude do indizível. (((SEREIAS se adapta para o audiovisual, uma obra-processo metalinguística, sons e suas respectivas origens, objetos, papel, faca, cerâmica, em contato se transmutam e soam através de um ecrã-alto-falante, e transitam em reverbs, ressonâncias, delays e afins, trânsito de sensações, tela dividida soando em uníssono. )))DEAD SEE trabalho sobre a película, a não-narrativa, algo que perpassa pensamento-palavra-teoria, atravessando o corpo físico em transe sonoro-visual. LOCKDOWN JÁ os glitchs e os beats, um filme que é processo, vídeo-música, um grito um salto uma vontade, a fuga para o isolamento em pleno horror da psicodelia de uma pandemia no brasil.))) WHY PATTERNS – resposta sensorial autônoma do meridiano parte do uno pra virar centenas, a obra da persistência, sinestesia de um cotidiano em isolamento social compartilhada por asmr, a obra da persistência ((((repetição de diferentes combinações, gerando diferentes sensações áudio-táteis, o som se materializa sem corpo físico, e mantém a resistência de transitar por todos os espaços… tal qual a esperança em tempos melhores. )))))))))
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Intimidades da politikaos
Vivemos um momento em que o conservadorismo sequestrou a revolta e o caos é o método. Diante dessa realidade de uma teocracia miliciana neoliberal (que acumula nomes como as antigas aristocracias), sejamos platônicos demiurgos de mundos outros, imperfeitos, radicais, divertidos, íntimos, sensuais, desesperançados, embora amor dentro de nós tenhamos. Intimidades da politikaos apresenta obras que ofertam narrativas da criação como resposta à barbárie. Consideradas as “bocas” de um terreno ou casa, as portas são ao mesmo tempo proteção, comunicação e passagem, ligação entre o conhecido e o desconhecido. Em HABITUS Leonardo Gonçalves faz nas moradias estudantis da UFPB, uma cartografia social na qual as portas revelam a polissemia que se faz presente nesses espaços comuns. Uma experimentação audiovisual que explora as divergências e a diversidade discursiva de um período de crise. O poema de Álvaro de Campos que dá título ao experimento visual ULTIMATUM, de Alison Bernardes, mesmo tendo sido escrito em 1917, parece trazer as exigências capazes de pontuar qualquer conversa sobre o momento presente. Assim como Pessoa, Os cogitadores buscam responder aos anseios de seu tempo com uma declaração efusiva, e em sua forma audiovisual bastante espontânea. Em TENTE NÃO EXISTIR, Amanda Devulski traz imagens de arquivo que ironicamente bradam o presente de um lugar no tempo que não mais está. Uma dentre as várias crianças no registro de arquivo, a autora dilui aquela ideia da presença em uma escala topográfica, como em mapas que afirmam “você está aqui” e num gesto performático busca apagar a materialidade da sua presença. E é também a partir da hipérbole da escala topográfica que Kalor Pacheco inicia sua narrativa em MADEIRA DE LEI articulando sua história, lugar, fala e ancestralidade, com a trajetória social e histórica atravessada pelas mulheres negras e periféricas determinadas a atuar no trabalho doméstico, na tarefa do cuidar e servir. Uma narrativa que é um exemplo incontestável de que o pessoal é político. Embora sua produção também atravesse sua vida pessoal (Entre o terreiro e a cozinha, O menino que colhia cascas, Fugaz) em MANUAL DO ZUEIRA SEM NOÇÃO, Joacélio Batista apresenta um manifesto irônico e lúdico inspirado nas cartilhas de resistência anticapitalista. Com uma fotografia primorosa e uma abordagem despudorada das estratégias que alimentam a resistência, faz lembrar que rir também é um ato político. Como em uma caminhada montanha acima, SONÂMBULOS de Tiago Mata Machado garante uma experiência densa. O desamparo como uma exceção tornada regra, diante da incontestável insuficiência das democracias liberais necropolíticas em garantir à humanidade afetos soberanos, “como se a morte não fosse”, é a sensação expressa em uma narrativa que se estende como uma noite interminável, em que a vigília se confunde com o pesadelo. Ensaístico, alegórico, filosófico, incômodo, um filme que fala para o seu tempo e para os que virão “sobre um mundo branco que definha”.
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A vida manda lembranças
Nesta ilha, onde a vida manda lembranças, cada experimento fílmico é provocador de uma experiência de busca, tingida poética. Busca-se um eu, busca-se outra pessoa, a vida, o ar, busca-se um lugar de pertencimento, vizinho da saudade. PELO AR, QUE É O SOPRO DELA, Rebecca Dantas viaja pelo tempo, por estradas, por Rebecas que foi e pelas que estão no devir, em localidades que guardam uma ontologia outra. As memórias, as saudades, os caminhos percorridos projetados em objetos amontoados no presente de uma sala de estar. Mas não é isso o que acontece? Não olhamos para o passado com os olhos do presente? A vida manda lembranças da sala de casa. E do quintal de casa também, o ABACATEIRO, do Felipe Espíndola, guarda nas fotos dispostas sob a cama, acontecimentos de um tempo ido, de quando folhado e rodeado de gente feliz. A vida, SOBRE VOOS RENASCIDOS, da Bruna Dias, lembra a curta distância que guarda dos processos fim. A cada findar, novos recomeços de si. Na rua habitada de PAGAR PARA RESPIRAR, a semi presença da figura humana e suas necessidades, dialogadas, pelo cachimbo e pelo próprio ar, traz, num contexto de pandemia, a vida urbana. Perto do fim desta ilha, por todo lado, o mar. Na sua CARTA DI KABU VERDI PA UM PORTUGUÊS KI TXOMA PEDRO, R. B. Lima imerge no ambiente da praia, a ponto de nos vermos ali, rodeados e rodeadas pelo oceano, pelas brincadeiras, caminhadas, pela vida litorânea. A essa altura, não ouço nada além do mar e do barulho da saudade.
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Experimentos Sonoros
A ideia inicial foi convidar três artistas da cena musical de João Pessoa para criar, propor e estabelecer experimentações audiovisuais tendo as sonoridades como signo detonador. ChicoCorrea, Rieg e Daniel Jesi assim curaram os convites para outros projetos que se destacam na cena da música paraibana contemporânea, provocando encontros inusitados entre artistas sonoro-musicais que desestabilizam as certezas e noções de gênero, pertencimento e pouso estético, usando os tempos de isolamento pandêmico para buscar explosões e implosões de sons e sentidos. Nessa ilha o som perfaz arquipélagos vibráteis, que duram sinais piscando silêncios com os cantos de olhos e dobrando os quadrantes de oitivas. Assim transporta os corpos embalados em redes a tatear sentidos para formar o ato-experimento. Colisões de atração ou repulsa, atração e repulsa, formando cadências a habitar os espaços nossos de sonhar sussurros preparando urros, formando vice-versas em recursão. Podem adentrar a ilha sem diapasões, os sítios efêmeros derivarão os devidos naipes.